Elio Gaspari

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Elio Gaspari

'Mercado' falou e traiu-se: não confiam em Lula, mas querem o atraso

Todos são contra a desigualdade, desde que a conta vá para o outro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

  • 47

Uma pesquisa da Genial/Quaest ouviu 102 operadores do mercado financeiro do Rio e de São Paulo para aferir o que eles pensam a respeito do governo. Resultou um prenúncio do fim do mundo: 98 acreditam que a economia vai piorar, 90 não confiam no governo e 85 acham que a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até cinco salários mínimos é prejudicial.

Esse resultado tem cara e coroa. Num lado, mostra o que pensa o "mercado", no outro como pensa esse mesmo "mercado". (Paul Volcker, o gigante que dirigiu o Banco Central americano colocava a palavra entre aspas porque não sabia o que era esse ectoplasma.)

Bolsa de Valores de São Paulo, a B3
Bolsa de Valores de São Paulo, a B3 - Rahel Patrasso - 22.dez.21/Xinhua

A divulgação dessa pesquisa coincidiu com novos dados sobre a situação de Pindorama. Com números de 2023, o IBGE informou que a pobreza extrema caiu de 31,6% para 27,4%. Em números absolutos os pobres eram 67,7 milhões e ficaram em 59 milhões.

O "mercado" acha que a isenção da cobrança de Imposto de Renda para o andar de baixo prejudica a economia. Ecoa um velho trabalho do professor Albert Hirschman (1915-2012) onde ele mostrou como o pensamento reacionário sustenta que os avanços sociais prejudicam aqueles que pretendem beneficiar.

O governo quer compensar a perda de arrecadação estimada em R$ 35 bilhões, resultante de um alívio para o andar de baixo, cobrando uma alíquota de até 10% para quem tem renda superior a R$ 600 mil por ano e paga menos que isso.

Trata-se de uma forma astuciosa (ou marota) de taxar dividendos. Pega leve em profissionais liberais e pesado no andar de cima. O médico que fatura R$ 600 mil no ano e já paga Imposto de Renda tomará uma dentada. Já o milionário que fatura R$ 10 milhões e pode vir a pagar menos imposto que o médico tomará uma mordida de R$ 1 milhão. É disso que o "mercado" não gosta.

Um bafo do século 19 sobre o 21

Pindorama tem as suas peculiaridades. Vive-se num dos países socialmente mais desiguais e todos são contra a desigualdade, desde que a conta vá para o outro.

Imagine-se que Lula decidisse confiscar todas as terras onde ocorrem incêndios propositais. Nessa cumbuca entrariam fazendas hipotecadas a bancos. Absurdo dos absurdos, não pode acontecer.

Coisa parecida já aconteceu, em 1888, quando ruiu um pensamento reacionário, que cozinhou por mais de meio século o contrabando de africanos escravizados e a própria escravidão.

João Maurício Wanderley, barão de Cotegipe, era bem casado. Havia governado a Bahia, ocupou três ministérios e presidiu o conselho do Império. Em abril de 88 ele escreveu ao Barão de Penedo (elegante negociador/corretor da dívida externa junto à Casa dos Rothschild):

"Para que lei de abolição? De fato está feita –e revolucionariamente. Os proprietários aterrados procuram conter o êxodo –dando liberdade imediata aos seus escravos. Eis o segredo de tantas libertações".

A abolição viria, aprovada a toque de caixa. Na véspera, Cotegipe foi para a tribuna do Senado. Reconheceu que, àquela altura, não existia alguém "mais impopular nesta terra do que eu."

Fez um longo discurso e a certa altura colocou um argumento impecável para o "mercado":

"O proprietário que hipotecou a fazenda com escravos, porque a lei assim o permitia, delibera de seu motu proprio alforria-os, o que pela nossa lei constitui um crime. (...) Os bancos, os particulares, adiantaram somas imensas para o desenvolvimento da lavoura, das fazendas. Que percam! (...) A verdade é que há de haver uma perturbação enorme no país durante muitos anos, o que não verei, talvez. (...) Se me engano, lavrem na minha sepultura este epitáfio: O chamado no século Barão de Cotegipe, João Maurício Wanderley, era um visionário!"

Era um reacionário catastrofista. A abolição veio no dia seguinte. Wanderley morreu nove meses depois e não aconteceu nada, além de ter acabado a escravidão.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior desta coluna afirmou incorretamente que João Maurício Wanderley, o barão de Cotegipe, era gaúcho. Wanderley nasceu em 1815 na vila de São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande, então pertencente à capitania de Pernambuco, atual município de Barra, no estado da Bahia.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

  • 47

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.

Maria Sylvia de Albuquerque Maranhão Pereira de Sousa

8.dez.2024 às 19h03

Estou inteiramente de acordo com o texto da coluna, mas deveria ser lembrado que o velho Cotegipe tinha razão ao vaticinar uma "quebradeira" geral do "mercado" de então. Todos os historiadores estão de acordo em apontar o período dito do "Encilhamento", que se seguiu à chamada "abolição", como uma liquidação de velhas fortunas e a ascensão de novos grupos financeiros. Então o velho Cotegipe não falava besteira, embora, como os atuais porta-vozes do dito "mercado", falasse por interesse próprio.

Amaury Kuklinski

8.dez.2024 às 18h16

Se sobrar mais dinheiro realmente o consumo vai aumentar e a arrecadação de impostos sobre o consumo, idem. Dá a isenção com uma mão e aumenta a arrecadação com a outra. Sem falar no aumento para quem ganha muito. Me parece que o governo vai aumentar muito a arrecadação. Não sei porque o tal de "Mercado" está chorando.

Milton Bonassi

8.dez.2024 às 17h19

Prezado Élio, um dos grandes problemas do Brasil são análises meia boca e ou erradas: no caso da proposta da isenção de IR de quem ganha até R$ 5.000,00 a reação contráriia do "mercado" ocorreu em função do BC vir aumentando a taxas de juros para esfriar o consumo e aí vem o governo e joga, com a medida proposta, mais força à demanda e à inflação que o BC precisa segurar, agravando ainda mais o endividamento do Estado Brasileiro. E não pelos motivos relatados na coluna.